3.5.11

Os detetives selvagens - Roberto Bolaño


Um grande livro. Realmente um grande livro. Foi ele que tornou o escritor chileno Roberto Bolaño mundialmente conhecido. E pensar que o deixei encostado por um bom tempo antes de respirar fundo e retomá-lo! Foi o O. quem o leu primeiro e disse que valia a pena. Também foi ele quem o comprou em uma tradução inglesa. Preferia tê-lo lido no original espanhol, mas não tive muita opção.

O livro conta a história (*) de um grupo de jovens com aspirações literárias que se autodenomina "realista visceral" e a busca de seus dois fundadores, Ulissses Lima e Arturo Belano, por uma poeta misteriosa, Cesárea Tinajero, que teria dado origem ao primeiro movimento "Realista Visceral". Lima e Belano, um alter ego do próprio Bolaño, não tomam diretamente a palavra, mas aparecem nas narrativas, praticamente entradas de diários, de seus conhecidos, amigos, amantes, ou mesmo de pessoas com as quais cruzam em suas andanças pelo México, Europa, Israel e África. O que sabemos sobre os dois é o que esses narradores nos contam, resta-nos juntar as peças  e tentar traçar o caminho percorrido por eles.

O primeiro narrador é Garcia Madero, um jovem de dezessete anos que acaba de entrar na faculdade de direito, conhece os "realista vicerais" e termina passando mais tempo escrevendo poemas em bares do que estudando. Lima e Belano são introduzidos por ele pela primeira vez. Depois as aventuras dos dois personagens - heróis ou bandidos, vagabundos ou espíritos livres, é impossível defini-los -  são retomadas por outras pessoas. Garcia Madero retorna na última parte do livro e, então, ficamos sabendo que fim teve a busca por Cesárea, deixada no ar na primeira parte da obra.

A violência, a miséria e a boêmia da cidade do México se imiscuem na vida dos personagens.  No fim, Belano, o chileno, imigra para a Espanha e se dedica à literatura, tem empregos medíocres e escreve durante à noite. Lima se perde nos bairros obscuros da cidade do México até desaparecer. 

Por alguma razão que não consigo explicar, levei um bom tempo até terminar a parte narrada por Garcia Madero, mas depois a leitura fluiu rápido. Gostei muito das partes narradas por mulheres. As personagens femininas do Bolaño são muito reais. Na verdade, o livro todo é muito real, cheio de vida e tudo o que ela implica. 

Sei que é arriscado traduzir um trecho de um livro já traduzido uma vez de um língua tão próxima da nossa, mas aqui vai, é uma das narrativas de que gostei, o momento em que Belano aparece em uma cidade litorânea do sul da França:

"As pessoas que se sentavam à minha mesa eram pescadores, profissionais e amadores, e muitos jovens como eu, garotos da cidade, fauna de verão, estacionados em Port-Vendres até segunda ordem. Certa noite uma garota chamada Marguerite, com quem eu desejava ir para a cama, começou a ler um poema de Robert Desnos. Eu não tinha a mínima ideia de quem era Robert Desnos, mas as outras pessoas da mesa sabiam, de qualquer forma, o poema era bom, era tocante. Estávamos sentados em uma mesa do lado de fora e as luzes brilhavam nas casas da cidade, mas não havia nem mesmo um gato nas ruas e tudo o que conseguíamos ouvir era o som de nossas vozes e um carro distante na estrada da estação, estávamos sozinhos, ou pensávamos que estávamos, não tínhamos visto (ou ao menos eu não tinha) o sujeito sentado na mesa mais afastada. Depois que Marguerite terminou de ler o poema de Desnos para nós - naquele momento de silêncio depois que você ouve algo realmente bonito, o tipo de momento que pode durar um segundo ou dois, ou sua vida inteira,  porque há sempre algo para cada pessoa neste mundo cruel - o sujeito do outro lado do café se levantou e se aproximou, ele pediu que Marguerite lesse outro poema. Em seguida perguntou se podia se juntar a nós, claro, respondemos, por que não? Ele foi buscar o café na mesa e emergiu da escuridão (porque Raul está sempre economizando eletricidade) e sentou-se conosco. Ele começou a beber vinho como nós, pagando algumas rodadas, embora não parecessse ter dinheiro, mas estávamos todos quebrados, que podíamos fazer? Deixamos que ele pagasse."

Este outro trecho é sobre o reencontro de um dos narradores com Ulisses Lima, após uma longa ausência deste último:

"Um dia perguntei onde ele esteve. Ele me disse que viajou ao longo de um rio que liga o México à América Central. Até onde eu saiba, esse rio não existe. Mas ele me disse que viajou ao longo desse rio e que agora podia dizer que conhecia suas voltas e afluentes. Um rio de árvores ou um rio de areia, ou um rio de árvores que se transformava em um rio de areia em alguns trechos. Um fluxo constante de pessoas sem trabalho, pobres e famintos, drogas e sofrimento. Um rio de nuvens que ele navegou por doze meses, onde encontrou inúmeras ilhas e postos de fronteira, embora nem todas as ilhas fossem habitadas,  de vez em quando ele pensava em ficar e viver em uma delas para sempre ou que ele poderia morrer ali.
De todas aquelas ilhas visitadas, duas se destacavam. A ilha do passado, disse ele, onde o único tempo era o tempo passado e os habitantes estavam entediados e mais ou menos felizes, mas onde o peso das ilusões era tão grande que a cada dia a ilha afundava um pouco mais no rio. E a ilha do futuro, onde o único tempo era o futuro e os habitantes eram planejadores e batalhadores, batalhadores, disse Ulisses, que acabariam por se devorar uns aos outros."


(*) Não costumo fazer a distinção entre "história" e "estória", acho que "estória" tira o mérito de narrativas que, para mim, são tão reais quanto aquelas que são chamadas de "história".

4 comentários:

Fernanda disse...

Oi Karen!

Puxa que legal! Que bom saber que você conseguiu "vencer" as páginas iniciais e fazer essa leitura!

Eu li o "2666" e comecei "Os detetives selvagens" quase em seguida. Mas não aguentei; talvez por ainda estar impressionada com o primeiro livro, não sei. Mas não consegui seguir com a leitura.

Mas ele está lá, na estante, me aguardando. Quem sabe quando terminar as leituras do momento. Mas a hora de cada livro chega, né? Adoro essa característica mágica dos livros de aguardarem seu momento de serem devorados por nós, na segunda, terceira, quarta tentativa... eles esperam o quanto for necessário.

No mais, sempre passo por aqui e adoro seus posts.

beijo!

Karen disse...

Fernanda, demorei para "engrenar", mas depois o percurso foi bem "suave". Quero ler "Noturno chileno", vamos ver.

O contrário aconteceu com meu marido, ele adorou os "Detetives" e empacou em "2666"... rs

Todo livro tem sua hora, não é mesmo?

Beijos!

Lílian disse...

Ei, Karen! Você sempre instigando a novas leituras. Lerei em espanhol.
Beijo

Karen disse...

Lílian, espero que goste, eu "peguei no tranco"... rs